O DEBATE


(Clara Ferreira Alves in Expresso, 12/09/2015)

Quando mais mediatizamos a democracia mais ela se esvazia de gente competente que não tem talento mediático. O tempo dos grandes comícios acabou com o tempo das grandes revoluções.

Quando esta prosa for publicada, o debate entre António Costa e Pedro Passos Coelho acabou. Como destes debates se espera que sejam combates de boxe, haverá um vencedor e um vencido. Já terei comentado a atuação. Mudará o combate o meu voto? Claro que não. Porque se trata disso, atuação, uma sabatina em que o mais treinado ou o mais expedito em palavras, o mais media trained, pode dar cabo do outro. O que isso me diz sobre o mérito da governação é nada. Quando mais mediatizamos a democracia mais ela se esvazia de gente competente que não tem talento mediático. O tempo dos grandes comícios acabou com o tempo das grandes revoluções. Os discursos e as atitudes são uma cuidadosa encenação de atores com um argumento escrito por profissionais. Nada é espontâneo ou natural. As vozes são afinadas pelo timbre da tecnologia. As frases são moduladas para o soundbite e o hashtag. A gravata é escolhida pelos assessores. A entrada em cena é filmada como se dois gladiadores entrassem no Coliseu rodeados do séquito de funcionários e conselheiros. Até os jornalistas são espetáculo. O espetáculo é anunciado semanas antes para que a multidão tenha o seu circo. E os media a sua audiência. Por trás ficaram a personalidade e a verdade. Toda a gente tem uma verdade, mesmo quando somos obrigados a viver num mundo de artifício. A verdade é o contrário das aparências. Por isso escrevo isto antes do debate.


Quando Pedro Passos Coelho apareceu em cena pareceu-me, nesse reino de aparência feito, um político decente, com intenções de direita, uma ideologia de direita, e um passado mais ou menos correto e limpo de trapalhadas. Composta pela minha ignorância, a aparência era positiva. Tinha recusado subvenções quando saiu do Parlamento, tinha trabalhado numa empresa que negociava com o Estado mas que não parecia particularmente desviada do propósito de ganhar dinheiro, tinha uma vida modesta. Não se importava de viver num andar em Massamá e não cultivava a corte cavaquista. Li o livro dele, que recebi no e-mail, e atestei meia dúzia de boas intenções. Se me perguntassem na altura o que pensava de Passos Coelho diria bem apessoado e genuíno. Ao entrevistá-lo como candidato não mudei de opinião. Não concordava com muitas propostas e a inexperiência causava-me desconforto, mas a renovação de um PSD acossado pelas querelas egocêntricas dos barões teria de se submeter à inexperiência. Não reparei muito na corte. Diz-me com quem andas dir-te-ei quem és. Não reparei em Relvas, que passado pouco tempo se armava em Napoleão e abusava do micromanaging para organizar programas de propaganda ou manipular os serviços secretos. Não reparei na legião de apparatchiks, grandes e instintivos produtores de doutrina e dotados de uma ignorância histórica e carestia intelectual que não existiam há dez ou vinte anos nas elites dos partidos. E não reparei que se pode parecer genuíno sendo um excelente mentiroso. O livro que escreveu desmentiu-o ele por atos e omissões. Muito do que disse que faria não fez. E muito do que fez não nos disse que fez ou que faria. O Pedro Passos Coelho que hoje tenho na minha frente, à frente do país, no frente a frente, pouco tem a ver com o homem que eu julgava que era. Sócrates pode ser o mais corrupto e criminoso ou o mais injustiçado e perseguido político português de todos os tempos mas tem uma dificuldade bem maior em ocultar a sua natureza narcisista e belicosa. Nenhum dos cursos da ação política dependeu do debate entre Sócrates e Passos. Nem as eleições. As eleições foram ganhas graças a uma obscura e bem montada campanha mediática com uso intensivo da internet e das correntes sociais (e com pormenores escabrosos) destinada a opor a venalidade gastadora do PS à austeridade virtuosa do PSD. Uma narrativa ‘europeia’.

Esta ‘narrativa’ permanece apesar de conhecermos os vícios da virtude salvífica. E continua a condicionar todo o debate político em Portugal. O PS não teve o mérito de a contrariar ou destruir. Não sei muito sobre António Costa. Sei que é pessoa decente. Sei que tem uma carreira executiva que garante experiência. Sei que não é dotado para a oratória e é dotado para negociações. Sei que não é mentiroso embora não seja transparente. Sei que sabe que não sabe tudo. Sei que podia ter ficado na Câmara (onde não concordei com coisas que fez) com uma vida mais fácil do que a de secretário do partido ou primeiro-ministro. Sei que tem uma equipa de técnicos e um programa de Governo. Sei que terá a tarefa de reformar um partido desunido e esclerótico, o dele. Sei que não é virtuoso. Sei que pode ser desajeitado. Sei que é pragmático. E que fará o melhor que puder se ganhar. Não espero que nos salve e salve a pátria. Sei que não gostei destes quatro anos e sei que não vou em aparências.

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