A resistência dos “estranhos companheiros de cama”
(José Pacheco Pereira, in Público, 11/07/2015)
Em partidos como o PSD e o CDS, mas em particular no PSD, houve uma clara deslocação à direita, violando programas e práticas identitárias.
Já tenho usado algumas vezes a frase da Tempestade de Shakespeare sobre os “estranhos
companheiros de cama” gerados pela “miséria” dos dias que atravessamos.
A citação em inglês é “misery acquaints a man with strange bedfellows” e refere-se a uma altura em que
Trinculo, para se proteger da tempestade, se mete debaixo do manto de Caliban.
Trinculo achava que Caliban era uma espécie de peixe, antes de lhe reconhecer
forma humana, e Caliban olhava com desconfiança Trinculo que lhe parecia um
espírito atormentado. “Estranhos companheiros de cama”.
Existe hoje na vida política portuguesa
uma série de “estranhos companheiros de cama”, cuja voz pública tem sido muitas
vezes, aliás quase sempre, das mais duras contra a situação, contra o governo
da coligação PSD-CDS. Incluo-me nesse grupo de pessoas e escrevo sobre elas não
porque ninguém sinta qualquer necessidade de o justificar, bem pelo contrário,
mas porque este fenómeno político é uma característica dos nossos dias e merece
ser analisado. Muitas das críticas com mais sucesso ao actual poder, todas
percursoras e algumas que se tornaram virais, vieram desse grupo de pessoas e
não de outras em que, pelo seu posicionamento político, teriam sido mais
previsíveis.
Num comício sobre a Grécia, falei ao lado
de dois membros do Bloco de Esquerda, Louçã e Marisa Matias, de um economista
comunista Eugénio Rosa, de um socialista Manuel Alegre, da escritora Hélia
Correia e do democrata-cristão Freitas do Amaral. Algumas das palavras mais
duras nessa sessão sobre o “estado da Europa” vieram da mensagem de Freitas do
Amaral. Durante a semana, Bagão Félix e Manuela Ferreira Leite, pronunciaram
críticas muito duras ao governo, como aliás fazem já há alguns anos. Em
matérias mais específicas, como por exemplo, as questões de soberania ou a
situação das Forças Armadas, Adriano Moreira e Loureiro dos Santos, não tem
poupado a acção governativa, com críticas de fundo e de grande gravidade. Podia
continuar com vários exemplos de outros homens e mulheres, que estão longe de
serem revolucionários, radicais, extremistas mas cuja voz se ergueu com
indignação face ao mal que está ser feito ao país, com intolerância face ao
erro e com um espírito analítico certeiro. “Quem fala assim não é gago”, é uma
frase que se lhes pode aplicar.
Também por isso são alvo de uma enorme
raiva, impropérios, insinuações, acusações que transpiram do lado
situacionista, no terreno anónimo dos comentários não moderados, que não são
senão reproduções das conversas obscenas que certamente se travam nos bares da
moda e nas reuniões partidárias das “jotas”. São os “velhos do restelo”, até
porque na maioria não são novos, que se opõem à gloriosa caminhada governativa
émula das Descobertas, não se percebe bem para quê, nem com que gente valorosa
e destemida. São os “treinadores de bancada”, na linguagem futebolística que se
lhes cola como um fato de treino, os que “só dizem mal”, “que falam, falam” mas
não fazem nada. São os “ressabiados” porque não lhes foram dadas sinecuras,
lugares, posições, quiçá negócios, a que julgavam ter direito. Esta crítica é
muito interessante porque é espelhar, quem a faz vê-se ao seu próprio espelho.
O que verdadeiramente não suportam é a independência alheia. “Jovens” de quarenta anos, cuja carreira, se reduz a cargos partidários e as respectivas nomeações como “boys”, escrevem e vociferam tudo isto. E afirmam com jactância que ninguém ouve os “velhos do Restelo”. Estão bem enganados, em termos de audiências, partilhas, e influência, são no chamado “espaço mediáticos” dos mais ouvidos, vistos e influentes. Falo dos outros e não de mim, mas também não me queixo.
A tempestade que criou estes “estranhos
companheiros de cama” explica a sua emergência e o manto que os cobre. Em
partidos como o PSD e o CDS, mas em particular no PSD, houve uma clara
deslocação à direita, violando programas e práticas identitárias, já para não
falar do legado genético do seu fundador Francisco Sá Carneiro. Esta deslocação
de um partido que foi criado pelo desejo fundador de ser o partido da
social-democracia portuguesa, consciente de que num país como Portugal a
“justiça social” era uma obrigação de consciência e de acção, levou à sua
descaracterização. E pior ainda, à mudança do seu papel reformador na
sociedade.
O PSD que está no governo e que manda no
partido, com as suas obscuras obediências maçónicas, com o seu linguajar
tecnocrático, com a sua noção de que a “economia” são os “empreendedores” e não
os trabalhadores, com os seus sonhos de criar um homem novo ao modelo de
Singapura, com o seu desprezo pequeno burguês… pela burguesia, pela sua vontade
de agradar aos poderosos do mundo, pela subserviência face ao estrangeiro,
encheu-se de pessoas cujo currículo é constituído pelos cargos internos no
partido e pelos cargos públicos a que ser do partido dá acesso. A sua repulsa e
indignação pela corrupção é escassa para não dizer nula, e personagens cujos
negócios são clientelares, para não dizer mais, são elogiados em público,
servem de conselheiros e são nomeados para cargos de relevo. O que é que se
espera que gente como Manuela Ferreira Leite, que é de outra escola da vida,
diga?
E que posições tem defendido estes
“estranhos companheiros de cama” que justifica serem tratados pelos boys como
sendo, pelo menos, cripto-comunistas? Falam de facto de coisas perigosas e
subversivas, como do patriotismo e da soberania, falam de um Portugal que não
se exibe apenas á lapela. Falam da democracia e do risco do voto dos
portugueses não servir para nada, visto que o nosso parlamento tem cada vez
menos poderes. Falam dos portugueses que não andam de conferências de jornais
económicos, a programas de televisão a explicar que as eleições são um “risco”
para a economia. Falam dos outros portugueses, dos enfermeiros e dos
professores, dos médicos e dos jovens arquitectos sem trabalho, dos pescadores,
dos agricultores, dos operários (sim, ainda existem), dos funcionários do
estado, insultados e encurralados, da pobreza que se esconde e da que se vê.
Falam das desigualdades que crescem, da pobreza envergonhada que existe na
classe média, do confisco fiscal, das prepotências da administração, da indiferença
face aos mais velhos, aos reformados e pensionistas. Falam muitas vezes com a
voz da tradição cristã, da doutrina social da Igreja, dos que foram deixados
cair no desemprego, das mulheres que antes eram operárias e ganhavam o seu
sustento e hoje são donas de casa, falam dos “piegas” que perderam a casa, o
carro, e pior que tudo, a dignidade de uma vida decente.
Deviam estar calados, porque isto é
“neo-realismo”. Estes são os portugueses de que não se deve falar. E fazem-no
para defenderem nacionalizações, para atacarem a economia de mercado, a
propriedade? Não. Falam muitas vezes porque são conservadores e genuínos
liberais, gostam do seu país e gostam dos portugueses, da democracia e da
liberdade. Eu sei, tudo isto é hoje revolucionário.
Mas há mais. Sentem, como se numa mais
que sensível pele, a hipocrisia dominante, ao ver aqueles que destruíram muita
da política de Mariano Gago, a elogiar o seu papel na ciência em Portugal, ou
quem afastou Maria Barroso da Cruz Vermelha a elogiar as suas virtudes como
“grande senhora”. E sabem porque tem sucesso e influência? Porque a sua
indignação é genuína e não mede as suas palavras num país de salamaleques, e
não falam por conveniência própria nem por obediência partidária. Se fossem
mais cordatos e mais convenientes, teriam certamente honras, lugares e
prebendas.
Por tudo isto, quando chove e venta e
troveja, a manta de Caliban é bem-vinda. É meio peixe? Talvez, mas como não
conto ir nadar para o mar dele e ela não conta vir para o meu, une-nos a manta
que nos protege da tempestade. E enquanto chove e venta e troveja são os “meus
estranhos companheiros de cama” contra a chuva, o vento e a trovoada. Penso,
aliás como Churchill, que se o Diabo entende atacar Hitler, sou capaz de dizer
umas palavras amáveis sobre o Inferno na Câmara dos Comuns.
É este espírito que “os estranhos
companheiros de cama” têm tido a coragem de trazer para a vida pública
portuguesa em que tudo desune e nada junta, mesmo quando o adversário usa de
todas as armas. É por isso que, a seu tempo, ficarão como resistentes desta
tempestade e não gente que foi à primeira chuvinha abrigar-se nas mansões
menores do poder.
Fonte: A Estátua de Sal
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