MARIA DE JESUS
(Clara Ferreira Alves, in Expresso, 11/07/2015)
Maria de Jesus Barroso Soares gostava muito das pessoas. Era como se o mundo fosse a sua família, e ela amava a família como amava Deus, sobre todas as coisas.
Foi estranho não a ver sentada na primeira fila da igreja. A
compostura elegante, a discrição sem severidade, o olhar reto, as costas
direitas. Fina como um pássaro de voos largos e asas de marfim. Sempre me
pareceu uma figura preciosa, dessas estatuetas que atravessam os séculos porque
são feitas de matéria rija e macia que o tempo não quebra. Silenciado o último
cântico, ela teria sido a primeira a levantar-se para nos vir consolar. Para
nos dar um abraço. Para nos dar um beijo. Para aliviar a perda. Foi estranho
porque estávamos ali por causa dela, e o cântico era lacrimoso e de despedida.
Um grupo de portugueses que só ela conseguiria unir. E, repito, consolar. As
despedidas são cabos das tormentas que ela dobrava como dobrou todas as
ausências e despedidas da vida de mãe-coragem e de mulher exemplar. Uma voz
moral, declamando poemas em português, uma voz naturalmente afinada para as
declinações da palavra. A voz moral de uma pessoa moral, de uma pessoa justa,
de pessoa corajosa e generosa. Não apenas uma boa pessoa, mas uma pessoa boa.
Maria de Jesus Barroso Soares gostava muito das pessoas. Era
como se o mundo fosse a sua família, e ela amava a família como amava Deus,
sobre todas as coisas. Há muitos, muitos anos, éramos todos muito mais novos, a
Maria de Jesus e o marido — e ele foi o marido dela tanto como ela foi a mulher dele —
abriram as portas da casa de Nafarros a um grupo de jovens. Jovens de todas as
classes sociais e de todas as denominações.
Mário Soares era o chefe de um Partido Socialista na oposição, e decidiu-se
realizar uma série de encontros com personagens, artistas, intelectuais, etc. E
jovens. Os jovens deve ter sido ideia dele, ou de ambos, porque Maria de Jesus
era uma educadora por vocação, a juntar às outras vocações. Nafarros foi ideia
dela. Era no campo e estava bom tempo e podiam estar à vontade. Os jovens
fariam as perguntas que entendessem. Alguns estavam intimidados por aquelas
duas figuras, aquele casal histórico. Maria de Jesus quis oferecer um almoço,
ao fresco, e foi ela que se encarregou de quebrar o gelo, fazendo perguntas aos
estudantes. O encontro correu muito bem, o ar cheirava a flores, e à sombra
verde das árvores havia uma mesa de toalha branca com comida farta, caseira. Os
jovens esqueceram a intimidação. E, quando parecia que o dia não seria mais
perfeito, ela levantou-se e disse: “Vou buscar uma coisa.” E trouxe um grande
prato com morangos. Morangos pequeninos, morangos de Sintra, colhidos de
manhãzinha, ainda picados do orvalho. Montanhas de morangos. Pousou o prato e
disse: “Os morangos fazem bem.” Nunca esqueci o raio de sol que lhe pousou
sobre o rosto ao dizer isto. Os morangos eram o toque dela, o toque pessoal, o
toque de mãe. Um bom prato de morangos para alimentar os jovens. Foi uma
alegria. Foi um mimo. Ela também era jovem, mais jovem do que sou hoje. Era uma
mulher bonita, com um rosto saudável e aberto, um sorriso limpo. E aquela voz,
que aceitava todas as tonalidades do afeto como aceitava as do poema ou da
frase. Voz feita para grandes feitos.
Recordo-a assim, iluminada pela claridade de Sintra num dia sem
nevoeiro, ela dissera na véspera que se estivesse bom tempo podíamos comer fora
de casa e Deus fez-lhe a vontade. Recordo-a em tempos sombrios, quando o filho
muito amado esteve quase morto e ela regressou ao seu nome, Maria de Jesus,
convertendo-se ao catolicismo dos primeiros anos. Foi o consolo da “Pietà”. O
João salvou-se, Deus fez-lhe sempre a vontade.
Recordo-a com a sua Isabel, no colégio, acompanhando as conversas,
assistindo às sessões, escutando os outros com a ternura de uma mãe que tem
orgulho nos filhos, nos netos, nos alunos, nos velhos e nos novos, nos seres
humanos. Sempre presente. Sempre ao lado. Sempre na primeira fila, que era o
seu lugar natural mesmo quando não queria chamar sobre si as atenções. O
saia-casaco bem cortado, o cabelo penteado, os sapatos de salto que a elevada
estatura humana dispensava. Questão de comportamento, de decoro, de porte. Era,
repito, uma mulher elegante.
Recordo-a a caminhar sobre as areias do Alvor, no verão, fazendo
a passeata madrugadora à beira-mar. Umas vezes acompanhei-a e fiquei a arfar.
Era uma atleta habituada a corridas de fundo, e foi essa também a vida
política. Fundadora do Partido Socialista em Bad Münstereifel, a companheira
nos tempos solitários da prisão e do exílio. José Cardoso Pires contou-me uma
história desses anos de chumbo. Ela pediu, quando soube que o escritor ia a
Paris e ia estar com Mário Soares, se lhe podia transportar umas camisas
lavadas e engomadas para o marido, porque em Paris ele não tinha quem lhe
tratasse da roupa. E lá foi ele, carregado de camisas ao passar a fronteira.
Amava o próximo, esta mulher. E amava o distante. Regressou ao seu nome, Maria
de Jesus, como quem regressa a casa.
Fonte: Estátua de Sal
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